1. Concentração territorial
Quando um número excessivo de indivíduos se aglomera num espaço limitado, os fenómenos sociológicos resultantes desta concentração humana assemelham-se aos do mundo animal. Tomemos o exemplo de um galinheiro. Nele, cada galinha afirma a sua individualidade ao dominar e defender o seu pequeno território. Se na “natureza” se verifica uma ocupação pluridimensional- vertical e horizontal- do espaço, num galinheiro, estas componentes ficam reduzidas ao mínimo: a dificuldade de exercerem uma dominação sobre o espaço provoca uma tensão que se traduz numa dominação vertical, hierárquica, entre os animais, condição fundamental para poderem viver em conjunto. Esta relação vertical tem uma consequência imediata: para que o grupo chegue a um certo equilíbrio precisa, por um lado, de “eleger” um elemento alfa dominador; por outro, precisa de eleger uma galinha ómega, expiatória.
É comum verificar num galinheiro a existência de uma galinha que se individualiza porque recebe bicadas de todos, não pode circular nos bons espaços e come em último lugar. O seu corpo depenado reflecte a sua fragilidade e os maus-tratos de que é vítima. Basta apertar o recinto do galinheiro para provocar um stress entre os animais, stress que acentua a agressividade contra esta galinha, mais magra e mais frágil. Naturalmente, a galinha expiatória pode viver uns dias mais desafogados e de relativo bem-estar se o galinheiro se tornar mais espaçoso. Curiosamente, presença desta galinha expiatória é fundamental na manutenção do bom funcionamento do galinheiro: com efeito, enquanto o grupo conseguir manter o comportamento expiatório que lhe permite descarregar a sua agressividade sobre o indivíduo “sacrificado”, a vida do galinheiro funciona. Mas se retirarmos a galinha “expiatória” do recinto, o grupo desune-se e entra em lutas até conseguir redefinir uma nova hierarquia.
2. O fado da galinha expiatória
Perante esta situação, uma pergunta impõe-se de imediato: existirão elementos ou características específicas que determinam o estatuto de um indivíduo ou galinha expiatória? O que fará com que um indivíduo assuma a função expiatória, trágica para ele mas benéfica para o grupo? Procurando responder a estas questões, o etólogo Schjelderub Ebbe, após variadas experiências, chegou à conclusão que a estranheza sensorial e a bizarria comportamental constituem factores determinantes.
Registemos algumas das suas experiências: numa delas, Schjelderub Ebbe pintou uma mancha azul na crista de uma galinha que estava bem inserida no grupo. Enquanto o galinheiro era suficientemente espaçoso, a “pintada” era bem tolerada; mas quando se aproximaram as paredes do recinto de forma a reduzir o espaço vital, reparou que a galinha “azul” foi designada de galinha expiatória e apanhava as bicadas das outras. Numa outra experiência colocou uma ligadura numa pata de forma a provocar um coxear artificial na galinha. O mesmo resultado foi obtido: logo que um factor stressante aumentava a tensão interior do galinheiro, a agressividade traduzia-se em ataques violentos sobre ela. Estas experiências sugerem que quando uma tensão perturba o grupo e aumenta o sentimento de frustração, o elemento diferente serve de pára-raios, como se constituísse uma fonte de perigo ou de angústia para o grupo. De uma certa maneira, as observações deste investigador revelam que o grupo constrói a sua identidade e coesão a partir de um duplo imperativo normativo:
— o primeiro estabelece as regras que definem o grupo, as suas características, semelhanças, os seus rituais, o seu modo de funcionamento.
— o segundo aponta o indivíduo considerado diferente, símbolo do que o grupo não deve ser, confirmando desta forma o primeiro imperativo.
Todos os grupos tendem a preservar os seus interesses e o que é específico do grupo. Este mecanismo de homeostase básico é vital, já que o grupo se define por um ou vários valor(es) comum(s) que não pode perder sob pena de se desfazer, perder a sua essência e razão de ser.
Em tempos de paz e de bom funcionamento, o grupo é relativamente permeável, a tal ponto que o estranho, geralmente considerado como factor de potencial perigo para a unidade do conjunto, é tolerado ou pode, até, despertar a curiosidade. No entanto, quando surgem pressões e incertezas que destabilizam o grupo, tudo muda. Declarado o estado de crise, o seu funcionamento torna-se mais hermético, de maneira que a reacção mobilizadora contra o “diferente” catalisa a coesão e os mecanismos de auto- preservação. Este fenómeno verifica-se periodicamente, por exemplo, em fases de incerteza que constituem ameaças (de desemprego, de guerra, de epidemia, etc). Nestes casos, os grupos existentes -sindicatos, partidos, clubes – associações diversas -, tendem a “apertar as fileiras” de modo a intensificar a sua actividade associativa. É nestas ocasiões que se procura um bode expiatório e, frequentemente, o elemento marcado pela sua diferença (cultural, religiosa, política, étnica, social, racial, linguística, económica) torna-se um objecto potencial de desprezo, segregação, e/ ou de perseguição. Os grupos de fãs do futebol, as associações partidárias, as seitas (e tantos outros grupos), comportam-se como as matilhas, com a sua bandeira, cores, cantos, líderes e, fatalmente, inimigos de estimação.
Se olharmos para a História, vemos que este fenómeno se repete ciclicamente: o protestante, o pestífero, o sidaico, o judeu, o católico, o estrangeiro, o turco, o árabe, o índio, o preto, o branco, o cigano, o muçulmano, o rico, o explorador, o comunista, cada um, a seu tempo, serviu de bode expiatório e justificou represálias, prisões e massacres. Se este mecanismo social – eleição de uma vítima que é sacrificada para o equilíbrio do grupo -, se encontra num tipo de organização mais “urbano”,ele pode ser activado em qualquer espaço ou meio, bastando para isto que sejam criadas as condições base: concentração de indivíduos num espaço circunscrito que impede a fuga e provoca uma alteração da vida do clã. É o que acontece numa escola, como veremos já de seguida.
3. O aluno expiatório e o riso de troça
Se os rituais alimentares ou sexuais, as actividades gregárias, o riso e o jogo são factores dinamizadores de coesão social, em certas circunstâncias podem apresentar uma outra função que, apesar de contribuírem, também, para o equilíbrio do grupo, tem geralmente consequências dramáticas. É o caso do riso de troça que implica uma vítima escolhida consensualmente pelo grupo.
Na minha prática de TSB pude verificar o número significativo de pessoas que sofre ou sofreu da síndrome ‹‹trocista››. Geralmente, a experiência de ter sido objecto de escárnio reveste um carácter tão traumatizante que, em certos casos, tem consequências desastrosas, tanto a nível psicológico como comportamental. Antes de apresentar alguns casos concretos, gostava de sublinhar as razões que tornam esta experiência tão dolorosa.
Sabemos que os grupos de adolescentes possuem regras próprias que se estabelecem a partir de elementos distintivos específicos: roupa, idade, linguagem, tamanho físico, corte de cabelo, referências musicais, culturais, sexuais, políticas ou desportivas, bebidas, tipo de alimentação e outras. Esta forte identificação a determinadas normas faz com que o grupo seja extremamente sensível ao elemento da mesma faixa etária que não se enquadra nos padrões estabelecidos. Quando numa sala de aulas surge um factor perturbador (medo de castigo, cansaço, tensão dos exames, formação de grupo, entrada de um novo aluno), é comum assistir-se a uma descarga de troça sobre o elemento do grupo considerado mais fraco ou diferente. Com o apaziguamento que segue esta fase, o conjunto reorganiza-se e volta ao seu funcionamento normal.
O medo de ser motivo de escárnio
O grupo oferece a todos os seus membros inúmeras vantagens, nomeadamente protecção e uma certa legitimidade existencial. No entanto, o conformismo e uma inevitável perda de liberdade e de iniciativa individual são, muitas vezes, o preço a pagar. Pelo contrário, a pessoa que recusa integrar um grupo preserva a sua individualidade intacta mas fica mais desprotegida e sujeita às represálias do(s) grupo(s).
No reino animal, o elemento que sai do grupo corre o perigo de ser eliminado, ao tornar-se uma presa frágil para os predadores. Esta regra aplicou-se também aos nossos antepassados que tiveram uma longa convivência com perigos de todo o tipo. Sem dúvida, o homem deve o seu êxito evolutivo essencialmente à vida gregária, que constituiu um escudo eficaz de defesa contra os predadores. No inconsciente biológico, o perigo da solidão e do abandono permanece muito forte e encontra em certas reacções dificilmente controláveis, como o pavor de ser excluído ou de se sentir ridicularizado frente aos outros, umas das suas expressões mais significativas.
Observemos algumas reacções que podem acompanhar esta experiência:
1) medo da exclusão e medo de “morrer” fora do grupo;
2) impossibilidade de se defender e de “morder”;
3) sentimento de desvalorização e de falta de protecção;
4) separação e medo de perder o contacto com o resto do grupo.
Vejamos agora um caso passado na escola.
João, ridicularizado frente aos colegas
Durante uma aula, João, um rapaz de 8 anos conversa com o colega do lado. O professor, irritado, chama-o ao quadro para corrigir o exercício. O rapaz não sabe responder e, com o giz na mão, envergonhado, não consegue dizer nada. Frente à turma, o professor não o poupa e ridiculariza-o em termos duros e exagerados face à pequena falta de atenção. «Foi terrivelmente desagradável, senti-me corar quando a turma se riu de mim. Lembro os olhares dos outros, a vergonha na cara e o sentimento de solidão, sozinho com o giz na mão››, recorda o jovem, mais tarde, aos16 anos, durante uma consulta. Perdeu o sono durante algumas noites, mas acabou por deixar de pensar no acontecimento. E tudo entrou na ordem… aparentemente.
Consultou-me por uma razão que, à partida, tinha pouco a ver com o episódio. Sofria de uma alergia à água que se manifestava no rosto, com comichão e manchas vermelhas. Os exames médicos tinham diagnosticado uma alergia ao calcário e como praticava muito desporto que o obrigavam a tomar dois banhos por dia, julgou residir aí o problema. Curiosamente, sempre que ia passar um fim-de-semana ou alguns dias a casa dos avós, na serra, não sofria qualquer problema de alergia. Concluía que a água «lá é pura e, sobretudo, não tem calcário, ao contrário da água da cidade››. Com estes dados na mão, procedo então a um exercício com um objectivo preciso: procurar um evento traumático que envolva um produto com calcário. Durante o exercício João recorda o episódio da escola, no qual o cheiro do pó do quadro e o contacto com o giz impregnaram a sua memória. A associação está feita. João, ao tomar consciência dela, sorriu, aliviado, como quem diz “bolas, apanhaste-me”. O mecanismo inconsciente, uma vez desmascarado, deixou de fazer sentido e a alergia desapareceu rapidamente.
Para finalizar, vejamos agora um outro caso.
A ansiedade de Sara e o medo de falhar
Uma senhora queixa-se de problemas de ansiedade. O que mais a perturba é o terror de falhar. É um medo tão grande, que a impede de tomar iniciativas e sempre que decide alguma coisa o medo de não ser capaz paralisa-a totalmente. Por exemplo, gostava de tirar a carta de condução mas adia sempre o momento de se inscrever numa escola. A um passo de entrar, hesita e volta atrás. A frustração é imensa. Além disto, quando atravessa fases depressivas, apresenta comportamentos obsessivos que se manifestam em exigências absurdas de perfeccionismo, com manias de arrumação e limpeza. Sente um mal-estar geral que a leva ao médico. As análises de sangue acusam uma ligeira anemia e o “diagnóstico” –“isto é nervoso, ansiedade”, leva a prescreverem calmantes. Quando me consulta, procuro alguns episódios traumáticos passados que possam fornecer pistas de análise. Dos vários momentos que marcaram a sua existência aponta um duplo episódio ligado ao ensino. Era boa aluna até que um dia, na escola primária, por causa de um momento de distracção, foi obrigada pela professora a subir para uma cadeira e a repetir várias vezes o seu erro, frente à turma. Sentiu-se “mingar como um ratinho” e passou uma grande vergonha quando viu as amigas, as colegas e a professora a troçar dela. Durante várias semanas teve medo de falar com as amigas e não queria ir à escola. No entanto, aparentemente, o tempo encarregou-se de fazer esquecer o episódio.
Quando entrou na universidade, os piores momentos de stress davam-se quando tinha de apresentar oralmente um trabalho. Sentia-se paralisada e uma vez o stress foi tão intenso, que teve de sair da sala para vomitar. Em consulta percebeu que, de uma certa maneira, estava presa numa lembrança de infância. Apesar de adulta, atribuía-lhe um valor tão real como no passado. Para resolver o caso, foi necessário mudar esta atitude e a sua relação com o acontecimento. «Guardo o episódio como algo de tragicamente sagrado, como um quisto dentro de mim››, confessa. Por isto, de forma a desdramatizá-lo e a diminuir a sua carga afectiva (ridículo e medo frente ao grupo), incentivo-a a mudar o seu papel: em vez de ser a vítima, sozinha contra todos, passa a ter um papel activo. lncito-a a utilizar a sua criatividade para alterar o filme e construir um novo, mais aceitável. Autoriza-se, assim, a rever calmamente as imagens do acontecimento, e começa, depois, a integrar alterações que lhe permitem realizar um novo filme, com uma nova encenação, onde os actores têm papéis diferentes. Viu-se adulta a entrar no elenco a fim de ajudar a criança do passado, frente ao grupo e introduziu fantasia e humor: mandou a professora, agora vestida de menina, escrever desculpas no quadro; imaginou-se a fazer palhaçadas e a rir com as amigas do seu pequeno erro, enquanto punha a professora de castigo no canto da sala!
Com este exercício, a paciente experimentou um novo ponto de vista: em vez de ser manipulada pela recordação traumatizante, passou, agora, a estabelecer uma nova relação que lhe permite rir.
Finalmente, brinca com o que era «tragicamente sagrado» e, graças ao riso, fez «explodir a memória traumática enquistada que parasitava a sua vida.
4. Conclusão: olhar simbiológico sobre os dois casos
O que nos revelam estes dois casos?
Que a ansiedade funciona como um mecanismo alérgico.
Imagino que o leitor imbebido de informações “científicas” sobre a ansiedade e a alergia, está desconfiado. Mas que “raio” tem a ver ansiedade e alergia, perguntará o leitor céptico.
Vejamos então este mecanismo aparentemente complexo, mas bastante simples na lógica simbiológica. Nos dois casos houve uma falta de atenção. Tanto o João como a Sara foram apanhados de surpresa e colocados numa situação de vexame frente a um grupo. Que solução simbólica o cérebro propõe? Entramos agora na lógica da compensação simbólica ( CS), com a qual o leitor do livro O que a doença diz de mim já estará familiarizado: onde há uma deficiência (de atenção, nestes dois casos), vai haver forçosamente uma resposta de hiper-vigilância.
Registemos uma ideia fundamental: todo o fenómeno alérgico corresponde a uma hiper-vigliância (hiper-sensibilidade) relativamente a um elemento específico associado a um sofrimento.
No caso do João, o calcário foi captado e associado ao escárnio. Calcário = escárnio.
No caso de Sara, a obrigação de se colocar em cima de uma cadeira frente a um grupo foi associada a falta de atenção, mais concretamente, ao perigo de estar desatenta. Desatenção = perigo de escárnio
A alergia ao calcário e a ansiedade constituem as medidas de compensação tendentes a evitar que caia de novo na mesma armadilha. No caso de Sara, a ansiedade torna-a hiper atenta e alergia ao calcário do João avisa-o de u perigo iminente.