Medo e perigo de certos diagnósticos (do livro Estarei Mesmo Doente? A doença como saúde, Presença, 1999, a ser reeditado em 2016).

O medo da doença é comum, sobretudo quando é alimentado permanentemente por informações assustadoras- reportagens sobre epidemias no mundo, relatórios médicos sobre doenças, estatísticas contraditórias. O medo, utilizado como uma poderosa arma manipuladora, destilado diariamente de modo homeopático ou injectado em doses mais violentas, como acontece durante certas campanhas de “informação”, cria um clima de instabilidade propício a comportamentos irracionais.

Se pegarmos, por exemplo, num folheto sobre a vacina contra a Hepatite B (editado pela Associação das Farmácias), vemos que o texto ilustra claramente esta ideia: “a Hepatite B pode matar- previna-se, vacinando-se”. Esta frase merece alguns comentários: se a hepatite B pode, de facto, conduzir à morte, como proceder então relativamente a outras actividades geralmente muito mais perigosas como andar de moto, de carro, nadar no mar, comer alimentos com produtos químicos, fazer alpinismo, etc? Será que deveríamos também publicar textos semelhantes: “O alpinismo pode matar,- previna-se…” Talvez o mais indicado fosse escrever qualquer coisa no género: “O ser humano é mortal- previna-se”. ( p.137)


A experiência de “não fazer nada”

O abuso de medicamentos sempre foi denunciado pelos médicos que conservam um espírito minimamente crítico e independente. Nos anos 50 do século XIX, ai saíram de uma conferência do Collège de France, um grupo de jovens médicos (acabados de sair da faculdade), embebidos dos seus recentes conhecimentos universitários, queixavam-se ao Professor Magendie da insuficiência dos meios e recursos terapêuticos. O ilustre professor, com toda a experiência da sua longa carreira em medicina e fisiologia experimental, perguntou, em forma de resposta: e já experimentaram não fazer nada?

De certeza, esta resposta deixou os jovens médicos numa profunda perplexidade, como aliás, deixaria a grande maioria dos nossos contemporâneos, médicos e doentes. No entanto, a resposta do Prof Magendie ilustra a posição de uma corrente marginal”izada” da medicina que, ao longo dos séculos, e apesar das modas, das repressões, das ideologias dominantes, dos novos cultos e fascínios, ficou fiel à tradição Hipocrática: primum non nocere e “tratar a causa da causa”. Quando Magendie aconselhava aos seus estudantes a não fazerem nada, por um lado, denunciava a prática excessivamente intervencionista e sintomática dos seus pares que consideravam que o corpo é, apenas, um conjunto de células e de órgãos sobre o qual se pode agir impunemente; por outro lado, queria afirmar que, por vezes, a melhor atitude médica consiste, modestamente, em deixar o organismo fazer o que sabe fazer sozinho. (p.169-170)