Compensação Simbólica e Sofrimento Infantil
As actividades conflituais governam visceralmente a nossa vida. Têm geralmente a sua origem nas aprendizagens e experiências traumáticas da infância, mas também na transmissão de memórias das gerações passadas. Podem traduzir-se em patologias ou em comportamentos que constituem formas simbólicas de compensar as aflições da infância. Um sentimento de falta (afectiva, de atenção, alimentar) vivido durante a infância pode desencadear uma necessidade insaciável de integrar o “objecto” que faltou. O menos (-) atrai o mais (+). Ao contrário, a pessoa estruturada a partir de um excesso (de violência, de protecção), compensa com menos (-); por exemplo, o excesso de violência sonora (gritos) numa família pode levar um dos seus membros a adoptar um comportamento notavelmente silencioso e calmo.
"Sou ignorada, ninguém olha para mim!"
Uma pessoa que viveu de forma aflitiva uma falta de consideração, de “olhar” na família - “sou ignorada, ninguém olha para mim”- pode ser levada a procurar, como forma de compensação simbólica, situações ou profissões de exposição (teatro, artes, televisão) assim como a ostentar certos gostos mais exuberantes – roupa excêntrica, cor ou corte de cabelo vistoso, tatuagem -, podendo mesmo chegar a comportamentos extremos como a auto-mutilação. Ao contrário, uma pessoa que foi excessivamente protegida, terá tendência a compensar os medos vividos pelos pais (do contágio “nojento” dos micróbios à ameaça do fim do mundo), com sonhos “sem medos ou lutas”, com a procura de situações de risco, mesmo aterrorizadoras. Geralmente procura amigos que gostam do risco e de situações limites, capazes de enfrentar o que apreende.
A compensação simbólica: uma necessidade para sobreviver; a metáfora do elástico.
Tentemos perceber melhor o mecanismo da compensação recorrendo a uma metáfora: a metáfora do elástico. Em posição de descanso, o elástico apresenta o seu aspecto “normal” tal como foi fabricado. Este aspecto pode ser comparado ao do nosso organismo em estado de repouso. O que caracteriza o elástico é a capacidade em se esticar (dentro de certos limites) para se adaptar às forças externas, às tracções, sem romper; no “corpo elástico” ocorre uma modificação estrutural que permite aguentar as tensões. Esta característica distingue fundamentalmente o elástico do arame ou da corda.
O nosso organismo “doente” reage de uma forma similar quando gere o stress duma pressão: abandona as características próprias do descanso alterando-se para se adaptar à tensão. Ao esticar-se, entra em compensação. Enquanto a perturbação persiste, o equilíbrio interno mantém-se graças a esta compensação. No entanto, logo que as forças (internas ou externas) que o destabilizaram deixem de agir, o organismo volta à sua forma de equilíbrio inicial; nesta altura desaparece a necessidade de compensação. A noção de equilíbrio interno, que proporciona a compensação, é mais evidente nos casos seguintes.
Um homem no meio duma tempestade
Num dia de tempestade, um indivíduo anda a pé contra a força do vento; para avançar sem perder o equilíbrio e não ser derrubado, o homem altera a sua posição corporal, inclina o tronco; cada passo custa e obriga-o a produzir grandes esforços. Compensa a força desestabilizadora externa com uma postura inclinada e uma mobilização de energia (extra) ordinária. Suponhamos agora que, nas mesmas condições físicas, a pessoa encontra-se na rua porque deve urgentemente socorrer um amigo a quem ocorreu algo de dramático em casa. Esta informação gera um stress (urgência para chegar a tempo, medo da morte) extremamente perturbador que torna as rajadas de vento insuportavelmente mais desestabilizadoras; agora, a envergadura da compensação é proporcional às tensões - interna e externa - acumuladas: hiperfuncionamento da tiróide, mobilização acrescida de glicose no sangue, hipertensão arterial, hiperventilação e ritmo cardíaco elevado, eis algumas das reacções fisiológicas compensatórias possíveis para enfrentar o vento nesse clima de urgência e de ansiedade.
A dinâmica do velejador
O velejador domina muito bem a lógica da compensação e sabe aplicar sistematicamente as suas regras quando enfrenta ventos fortes em alto mar. Se ficar inactivo com a vela erguida, o barco vira-se rapidamente. Para manter o barco em equilíbrio é necessário exercer uma força contrária ao sentido do vento na posição de “rappel”; o velejador utiliza ao máximo o seu peso e um ângulo de inclinação muito aberto para produzir uma força capaz de manter o equilíbrio entre as rajadas e o barco. Nesta metáfora do veleiro sujeito às forças do vento e da compensação, é interessante notar que o equilíbrio obtido é extremamente dinâmico, já que a velocidade que propulsa o barco resulta dessa oposição ou, mais precisamente, desse (aparente) equilíbrio dinâmico. A compensação na vida humana consiste, de facto, em criar uma força (verificável num comportamento, num sintoma, numa atitude, etc) que contrabalança a falta ou o excesso na origem do sofrimento. Deste jogo compensatório resulta um novo dinamismo na pessoa.
É o nosso sistema nervoso autonómico que toma as medidas compensatórias para manter o “balançar” fisiológico interno dentro dos parâmetros existenciais do indivíduo.
Este sistema, que regula os mecanismos básicos de sobrevivência e gere as funções vitais, determina as soluções de sobrevivência dentro da sua área de competência, face ao imprevisto, ao insuportável.
Assim, uma pessoa que vive de forma obsessiva e desvalorizante a oposição sistemática dos colegas à realização do seu projecto, que se “sente impedida de atingir o objectivo desejado”, poderá vir a apresentar uma compensação comportamental simbólica. Por exemplo, uma atitude corporal inclinada e tensa como se estivesse numa luta contra a força do vento ou contra a maré. Pode, também, apresentar uma compensação orgânica com sintomas reveladores de uma luta interna: hipertensão, hipercolesterolemia, diabetes, etc.
A compensação ocorre em todos os campos da vida. De cada vez que o homem encontra dificuldades, insatisfações e sofrimentos que põem em causa o seu bem-estar e o seu equilíbrio interno, potencializa-se a necessidade de recorrer à compensação.
- Alimentação (doce, chocolate quando o afecto “anda pelas ruas da amargura”). O álcool desinibe, fornece calor e apaga o desagradável. Ao contrário, uma alimentação extremamente regrada, roçando o castigo e a castração pode ser, por exemplo, a compensação dum sentimento de culpa e de medo relacionado com o desleixo ou a desobediência.
- Actividade física - andar a pé, de bicicleta ou correr praticados obsessivamente podem ser formas de enganar a falta de relação, a insatisfação ou a urgência de entrar em contacto com o outro.
- Hábitos – cigarro, perfume – podem ser formas de compensar a falta de identidade territorial (corporal, afectiva, familiar, social) e de afirmar um espaço pessoal para respirar/viver à vontade.
- Patologia- como no caso do velejador, que ganha força e velocidade pela compensação corporal no seu esforço contra o vento, a patologia surge como uma forma simbólica de solucionar/ enfrentar o que bloqueia a pessoa. Por exemplo, no caso referido, do homem que recebe uma notícia trágica no meio da rua, a hipertiroidia e a hipertensão são reacções orgânicas- patologias- derivadas da necessidade de compensar um conflito.
Sentimento de desvalorização e compensação simbólica
De que forma uma pessoa sujeita a desvalorização pode exprimir essa conflitualidade interna e como se manifesta a compensação simbólica?
Na linguagem oralA sua vivência interior traduz-se em expressões do género: “não sou capaz de; o outro é que faz bem e merece; nunca consegui ou fui capaz de... ; os outros não reconhecem o meu valor; esforço-me mas nunca obtenho os resultados desejados; o que fiz é igual a zero; fui desconsiderado e humilhado; nunca ninguém ouve as minhas sugestões, já não sei tocar piano tão depressa, estou velho”.
No corpoA desvalorização manifesta-se nas zonas escolhidas pelo cérebro em sintonia com o teor do vivido emotivo (motricidade, agilidade, estética, sedução, inteligência, potência, agressividade, etc). O aparecimento de patologias funcionais ou orgânicas costuma limitar a capacidade de autonomia da pessoa. Todas as partes da estrutura do corpo (esqueleto, músculos, tendões, ligamentos) podem sofrer alterações: problemas articulares (lordose, cifose, artrite, joanete…) ,ligamentares (tendinite, canal cárpico…), musculares (mioma, sarcoma, endometriose..), osteoporose, cáries, etc.
No comportamentoDominam atitudes de evitamento, timidez, submissão e gestos inseguros, contidos (por vezes agressivos), auto censurados, sobretudo quando a pessoa vive a desvalorização de forma elementar.
Desvalorização compensada
Para além desta forma de desvalorização elementar, existe uma desvalorização compensada que passa despercebida porque tem efeitos opostos. O que significa desvalorização compensada?
Significa que a pessoa “em compensação” entra numa dinâmica de vida que lhe permite superar o conflito interior de tal forma que este último torna-se o motor da sua existência. Assim, em vez de se limitar, de se censurar, a pessoa investe numa profissão, numa actividade onde encontra uma posição valorizante graças à autoridade, sedução, visibilidade, dinheiro, que lhe garantem reconhecimento e poder. Na história da humanidade não faltam personagens que, na base da compensação simbólica duma profunda desvalorização infantil (geralmente, uma insuficiência de reconhecimento de um dos pais), dominaram grandes impérios económicos, políticos e sociais ou assumiram uma carreira intelectual ou desportista de alto nível. No entanto, é evidente que no âmbito da compensação da desvalorização, e por muito dinâmica que pareça a pessoa, ela está confinada a uma atitude reactiva a uma frustração que pode gerar o delírio, o sonho, a megalomania, incapaz de ser plenamente autónoma nas suas decisões e atitudes.
Quando a dificuldade em viver a “realidade” excede a capacidade de adaptação e ultrapassa o limite aceitável de gestão do sofrimento, revertemos forçosamente o excesso de stress no campo do imaginário (sonhos, delírio) ou do simbólico. Alias, se olharmos para a nossa vida com atenção, verificamos que uma parte das nossas escolhas (gostos, afinidades, amizades, moradas), das nossas actividades (profissão, passatempo, estudo), e comportamentos (sociais, sexuais, afectivos, religiosos) constituem respostas compensatórias a determinados sofrimentos familiares e infantis. Por exemplo, o sujeito que recorre à musculação intensiva, normalmente quer impor, a si e aos outros, uma nova imagem corporal mais volumosa, mais imponente e visível; na realidade, a massa muscular protege a fragilidade interior e compensa um sentimento de impotência e de debilidade relacional, tal como a roupa extravagante revela um deficit de atenção e de reconhecimento, uma frustração de amor.
O sintoma “patológico ”, comportamental, é uma resposta fundamentalmente simbólica aos nossos pedidos inconscientes. (quadro).
Real – Imaginário – virtual - Simbólico
O ser humano reage como os animais a factos e a situações reais -ataque de um predador ou de um inimigo, abandono, falta de alimentos com risco de morrer de fome, separação, perda das referências, etc. No entanto, em muitos casos, como vimos já, reage com a mesma intensidade aos estímulos imaginários ou virtuais. Basta ver as reacções, as emoções fortes - o choro, a raiva, a tristeza, o pavor ou o desespero - que um filme, um documentário, um jogo, um livro ou um pesadelo podem despoletar, para medirmos o impacto que uma informação imaginária, virtual pode ter sobre a gestão cerebral. De facto, pelo imaginário podemos viver um conflito de uma forma profundamente vital.
Medo- Imaginação da morte: a Caixa de Pandora dos medos
Os medos desencadeiam respostas biológicas de fuga a situações consideradas perigosas (aproximação de um predador, ameaças, elemento não identificado…) e constituem uma categoria extremamente prolífica, de carácter fortemente patogénico. No homem, o medo de algo tem como catalisador o imaginário que, não tendo limites definidos , pode produzir tsunamis de emoções capazes de paralisar o funcionamento do cérebro. Desde as situações compartilhadas com o mundo animal - “ser atacado, morrer sem ar, não ter os meios para sobreviver, perder o território”- os medos atingem todos os campos da vida- medo de perder um parente, de se separar, de ficar desempregado- podendo adquirir as formas mais delirantes, todas as que o sujeito lhe quiser conferir: medo do inferno, ansiedade provocada por um filme de terror ou uma informação televisiva, medo de morrer abandonado, medo de sofrer por baixo da terra, medo de enfrentar o juízo final, medo de ter medo... a lista é infindável.
Aflição dum pai
Um senhor despede-se da filha, que vai passar férias na praia. Durante uns dias sente-se irrequieto, ansiosos, não dorme bem. O medo de perder a filha leva-o a imaginar momentos dramáticos: a filha apanhada por uma onda a lutar desesperadamente; a filha aflita por baixo da água à procura de ar e outras situações do género. Vive esses momentos de aflição como se fosse ele próprio a lutar pela vida. Tenta abstrair-se, mas a inquietação é mais forte, subjugado que está por uma série de imagens trágicas. O regresso da filha permite-lhe solucionar a ansiedade. Alguns dias depois, uma forte tosse com catarro assinala a fase de resolução desse conflito de medo de morrer por falta de ar, que atingiu os pulmões.
Virtual, imaginário ou real, o nosso cérebro arcaico responde sempre da mesma forma e as suas respostas tendem para um único fim: restabelecer o desequilíbrio que o sofrimento vivido no isolamento provocou; essa resposta simbólica restabelece o equilíbrio e alivia o ser humano.