O homem é uma memória que age.
1- O Cérebro, museu activo de memórias
É conhecido o pavor dos ratos (ao contrário dos hamsters) ao fumo. Antigamente, nas aldeias, quando se viam bandos de ratos a correr sabia-se que um incêndio andava por perto. Podemos facilmente imaginar a tensão vivida por um rato posto em contacto com o fumo, mas retido na sua solução de fuga. Se este drama continuar, o animal em hiper stress acaba por morrer de esgotamento das supra-renais, já que os seus esforços não se concretizam numa acção. O cérebro do animal “enfumaçado” recorre, então, a um mecanismo de salvação extrema: como o oxigénio que se rarefaz induz um stress de “medo de morrer por falta de ar”, a solução do rato consiste em agir sobre a sua própria estrutura funcional, de forma a aumentar a capacidade de aproveitamento da pequena quantidade de ar ambiente. Fisiologicamente, isto traduz-se por uma multiplicação dos alvéolos pulmonares (carcinoma). Esta alteração celular e funcional (gravada nos genes) que visa adaptar o indivíduo a uma situação de alto risco é, de facto, uma solução de extrema urgência que compensa a incapacidade de reagir “normalmente”.
Perante estes dados, seria precipitado deduzir que o fumo é patogénico e cancerígeno. Para o rato, que não é programado biologicamente para viver com fumo, da mesma maneira que o peixe não é feito para viver fora da água, o fumo constitui uma fonte intensa de stress que se manifesta nas vias respiratórias (bronquite, carcinoma alveolar, ulceração da mucosa nasal, pólipos, etc). No entanto, para o hamster, o fumo não constitui um factor de stress e, por isso não induz nenhuma alteração fisiológica, que é sempre uma solução urgente de adaptação. Vemos, assim, que um factor determinante da patologia é a relação que o indivíduo estabelece com o elemento exterior: sente-se ou não em situação de perigo? Desta relação surge (ou não) o lançamento de uma medida de adaptação pelo Cérebro Estratégico.
O cérebro gere a cada instante a nossa adaptação, quer em relação ao meio externo (o que respiramos, comemos, tocamos, os outros com quem comunicamos) quer em relação ao nosso interior (o que sentimos, as emoções). Dispõe, assim, de todos os mecanismos de sobrevivência que não são mais do que soluções de adaptação gravadas pela espécie ao longo da história num “museu activo” de memórias.
Cada época paleontológica caracterizou-se por aprendizagens novas, por uma evolução das relações com os minerais e com os seres vivos. Estas informações, que constituem o “livro de sobrevivência dos seres vivos”, estão gravadas e disponíveis nos “ficheiros” do ADN [genes e as suas regiões reguladoras (30%), “Lixo” do ADN (70%)] que o cérebro consulta permanentemente, sobretudo nos momentos de hiper-stress (situação de aflição em que não se vislumbra uma solução imediata). Assim, um tecido que entra em mutação para formar um tumor, utiliza em poucas horas um “saber específico” elaborado pela evolução da espécie ao longo de milhões de anos. Nestes casos, o saber utilizado pode decorrer também de uma aprendizagem de adaptação mais recente na história do indivíduo e do seu clã.
2- O Cérebro Estratégico e a intensidade do conflito.
O que pode levar o cérebro a desencadear reacções tão diferentes?
Dado o stress provocar as reacções psico-cerebrais, é a intensidade do conflito o elemento determinante na reacção psíquica e orgânica da pessoa.
- Uma actividade conflitual de pequena intensidade dá origem a uma patologia de grau menor: diarreia, gripe, eczema leve, prisão de ventre, nervosismo passageiro.
- Uma actividade conflitual de intensidade média dá origem a uma patologia de grau médio, com perturbações suportáveis e pouco invalidantes: tiques, indigestão, sono leve ou agitado, colite, dores articulares, irritação da bexiga, do útero ou da próstata, cáries, etc
A resposta patológica é proporcional à intensidade do stress; no entanto, se na sua essência ela constitui um esforço para manter a sobrevivência, nos casos de stress extremo esta solução pode exceder as capacidades adaptativas do organismo e colocar, paradoxalmente, a vida em risco.
O que faz variar a intensidade dum conflito? Vamos analisar quatro factores essenciais:
a)
O aspecto inesperado da situação, O aspecto inesperado da situação deixa a pessoa sem resposta, condenando-a, muitas vezes, a vivê-la no isolamento. Num acidente resultante, por exemplo, de um piso escorregadio ou de uma queda nas escadas, a pessoa, apanhada de surpresa, não dispõe de tempo para recorrer a uma solução racional e, assim, tem de se sujeitar ao impacto do acontecimento. Nas relações humanas os comportamentos inesperados e chocantes (traição, mentira, falta de respeito, roubo, etc.) que ocorrem com muita frequência, provocam um aumento dramático do nível de stress, sobretudo quando a pessoa não consegue desabafar com alguém, como no exemplo que se segue:
Traição dum amigoUm senhor é solicitado para emprestar dinheiro a uma pessoa amiga. Trata-se de um conhecido que goza de um boa situação profissional e social mas condicionantes várias obrigam-no a pedir esse empréstimo que promete saldar num brevíssimo espaço de tempo. A confiança no amigo, os seus argumentos e a promessa de devolver o montante num curto prazo, convencem o senhor. No dia do pagamento, o amigo pretexta um impedimento de última hora e promete o pagamento nas próximas semanas. Esta cena repete-se e o pagamento vai-se protelando. Ao ser obrigado, periodicamente, a abordar um assunto que prevê de difícil resolução, vive uma sensação de desconforto. De facto, como o empréstimo tinha sido realizado entre amigos, sem qualquer comprovativo, nunca mais recuperou o dinheiro. Não pôde falar com ninguém dessa “desfeita” e ficou a remoer o assunto com um sentimento em que se misturavam raiva surda, traição, humilhação e desvalorização. “Como cedi eu tão facilmente às mentiras deste “amigo?”, eis um dos seus pensamentos obsessivos. Pouco a pouco, entrou numa fase depressiva. Passados alguns meses, aparecerem sintomas físicos bastante perturbadores (osteosarcoma na bacia, problemas digestivos).
Abandonada pelo noivoO caso seguinte ilustra como um acontecimento inesperado pode provocar a destruição de um território afectivo. Maria namorava com o João desde os quinze anos. O casamento foi marcado para o dia dos seus 25 anos. Começaram os preparativos da cerimónia - vestido da noiva, lista dos convidados, menu, viagem de lua de mel. No entanto, uns meses antes da cerimónia prevista, o João desapareceu durante duas semanas, sem dar notícias. Quando reapareceu, declarou que tinha uma nova namorada e que já não desejava casar. Em poucos segundos, Maria viu desabar todos os seus planos de vida. Não conseguia entender, não acreditava no que ouvia. Seria um pesadelo, uma alucinação ou a realidade? Teve de se conformar. Durante longos meses viveu com uma profunda sensação de vazio e de desespero. Culpabilizava-se de uma desatenção, uma falha ou erro que pudesse ter cometido involuntariamente. A vida não fazia sentido e era lhe insuportável enfrentar a solidão. Traição, abandono, inutilidade, perda afectiva, eis os sentimentos dominantes nos longos meses que se sucederam à ruptura. É inútil insistir sobre os efeitos desastrosos dum tal acontecimento. Convém necessário sublinhar, no entanto, que a sua violência resulta, sobretudo, do efeito surpresa, que deixa a pessoa sem resposta e sem defesa. Apanha “tudo em cheio”, como uma violenta bofetada e o choque é tão devastador que todo a estrutura afectiva presente e em construção fica aniquilada. Encontra-se exactamente no estado psíquico e físico de um “refugiado” depois de um violento sismo. As referências de vida desapareceram e, pela frente, não encontra nada mais do que um imenso e desesperante vazio. Geralmente, o estado depressivo constitui apenas a parte aparente do abalo. Um acontecimento desta intensidade desencadeia automaticamente uma série de reacções psico-emotivas que activam vários programas biológicos: conflito do ninho, desvalorização, culpabilidade, abandono, frustração sexual. O luto do acontecimento está feito quando a pessoa consegue olhar o episódio dramático sem emoções perturbadoras (raiva , culpabilidade, angústia), quando sente que aprendeu algo que a ajuda a gerir melhor a sua vida, quando, finalmente, se sente capaz de investir numa nova construção afectiva.
b)Uma experiência traumatizante anterior, geralmente na infância (cf terceiro princípio da TSB). Uma experiência anterior cria uma “ferida” que programa a pessoa para um certo tipo de reacção. A prática clínica confirma que raramente um sintoma aparece a partir dum só choque. Normalmente, aparece quando a memória dum sofrimento da infância ou duma experiência traumática vivida durante a gravidez é reactivada por um segundo choque. Em terapia, é relevante saber que a percepção emotiva dos dois episódios é idêntica.
Com efeito, nem todos os acontecimentos perturbadores da vida emocional têm de revestir um carácter inesperado e intenso para alterarem o território emotivo. Às vezes, na juventude, a separação de um amigo ou de um objecto querido, uma mudança de casa ou de escola, um beijo perdido, uma zanga ou um castigo não merecido podem ter consequências desestabilizadoras, que geralmente acabam por ser “digeridas” mas que não deixam de constituir zonas sensíveis que influenciam decisivamente o feitio (confiança, agressividade, violência, apatia, agitação, estabilidade, dinamismo, timidez, desconfiança, hipersensibilidade, etc). Por exemplo, um menino recém-nascido permanece durante uns dias na incubadora. Isolado da mãe, sente-se abandonado e inseguro (programação). Aos 15 anos, o rapaz fica separado da 1ª namorada, que muda de cidade. Com o sentimento de abandono, entra numa depressão e aparecem irritações cutâneas na parte interna dos cotovelos, antebraços e coxas. Nos dois episódios está patente o sentimento de abandono/separação; o eczema reflecte a gestão psicocerebral desta situação e a sua localização revela, mais precisamente, o sofrimento resultante da perda de contacto no gesto Abraçar. (cf livro O que a doença diz de mim, Ponto 6 do capítulo Alergia)
A estrutura psíquica que se elabora a partir de sofrimentos precoces potencializa o aparecimento duma patologia crónica. Por exemplo, certos acontecimentos traumáticos de infância relativos a medos intensos gerados no meio familiar (resultado de disputas, zangas, etc), constituem alicerces suficientes para a construção de uma estrutura psíquica respiratória. Isto significa que essa pessoa apresenta uma sensibilidade que a predispõe a viver as situações de stress em termos de “ameaça para o território”; neste caso, o stress solicita preferencialmente os brônquios ou os seios nasais. Assim, na maior parte dos casos, a pessoa que reage com intensidade a uma situação aparentemente irrelevante viveu, numa época passada, um acontecimento marcante (sofrimento) em circunstâncias muito semelhantes. O episódio recente reactiva o antigo e dá-se um efeito cumulativo que explica, muitas vezes, uma reacção desproporcionada relativamente ao acontecimento em si, aparentemente anódino. De facto, a causa do forte impacto reside na programação consecutiva ao primeiro acontecimento traumático; o organismo sensibilizado fica como uma arma engatada pronta para “disparar” no caso de viver um episódio similar.
c)A actividade duma memória transgeracional traumática.
d)Uma crença patogénica e limitativa (cf Livro O que a Doença diz de Mim, Ponto 3 do capítulo Menopausa, Ponto 1 do capítulo II Obesidade (a história de Luisa).
Concluindo, muitos são os factores em jogo no aparecimento duma patologia que obrigam o terapeuta-detective a multiplicar os seus campos de investigação. Um deles, fundamental, é a PERCEPÇÃO EMOTIVA.